quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Caríssima Emma,

Em resposta ao teu clamor missivista, creio ter algumas imprecações a fazer.

Muitos de nós, em passeios pela rua ou contemplando a vida comum dos outros, muitas vezes nos deparamos com musiquetas do tipo "Traviata", que por seu refinamento não é uma composição de qualquer compositor erudito, mas a clara tentativa de romantizar a música. Mas dá vasão ao que os pequenos sentem, repare! E nesse reparar a vida comum dos outros, criamos o profundo afastamento de achar que o que o cancioneiro popular celebra é algo muito distanciado de nós, que não revela a forma como sentimos ou o que esperamos dos nossos sentimentos, dos nossos afetos.

Sim, Ema, tenho saudades de quando eu era comum, antes de 24 anos de juventude eternos e perdidos em torno de mim mesmo! Tempos sem Mefisto, tempos sem filtros, rouenense! Invejo Luísa, naquele quarto sujo e ordinário de hospedaria barata, às vezes!

Entretanto, a cada dia tenho mais a certeza de que o mundo, e particularmente as pessoas, mergulham de forma cada vez mais intensa numa nova leva de romantismo, dessa vez sem suicídios wertherinianos ou tragédias à Romeu e Julieta. Mas um tempo ainda pior! E mergulham na faça talvez mais cruel do ser romântico: o bovarismo! Sim, Hemma, somos todos Emma Bovary!!!!!! Eu é outro! Eu é tu, amiga adúltera! Deleito-me com a sua história, amiga, e com a forma como pensas estar se divertindo com Leon ou Randolphe. Advirto, Emmah: lembre-se do jogo perigoso que outros amigos nossos, Marguerite e Luísa e mesmo Othelo adentraram! Mas, amiga, creio que o que tens passado nos sirva para pensar algo sobre todos nós, decerto!

E penso que somos Ema e vivemos como Emma em mais de um sentido. Não gastarei aqui o oaristo a tentar conceituar as coisas que me falaste. Apenas usarei os catorze passos da tua pena, as catorze estações do seu martírio. Os teus Passos da Paixão. E depois dele, teus Três Mistérios, perguntas que farás e talvez nunca responderás! Não batas, pois portas não há! Nem clames pela salvação de tua alma, posto que já a entregaste como sacrifício pela vida que tu quiseste bela e não o foi! Não terás a décima quinta! Não ressuscitarás ao terceiro dia, amada!

- I -

Vivemos a mais completa insatisfação com as nossas vidas, romanceando-as de forma a criar um amanhã possível calmamente inseridos dentro de um amor arrebatador (????), que muda, transforma, faz da puta, santa (lembras-te de Lúcia, nos trópicos?), do mau, bom, do duro, macio (e a Fera, Bela?). E ainda mais, uma crença numa vida futura burguesa, morna, quase fria, laureada pelo dito amor eterno. Isso sem falar da casa, do jardim de rosas, da vida mansa de Luísa, dos idílios amorosos e sexuais... Aaaaaaaaaaaaaaaaah, Emma, que enfado! Que seca, diria o quase pederasta Jacinto, que conheci em Paris, cidade na qual creio que nunca irás! Não adianta esperar, Ehma, não espere!

- II -

Somos Ema Bovary, como vc, quando nessa nossa insatisfação pelo romance-vida-Romance, invertemos a lógica do olhar e dizemos: Ah, sou livre! (Mas na verdade penso: Quero um amor que seja só meu, que me agrade, proteja e equilibre. Um homem pra chamar de meu! Mesmo que seja eu!!!!!!) E nesse afã, nos negamos a ter uma posição crítica sobre nós mesmos. Ou seja: o que eu sou capaz de oferecer ao outro, visto que eu quero apenas estar satisfeito nas minhas necessidades amorosas? É claro, que nessa lógica, estamos sempre com a sensação de que algo não vai bem, que o outro não é aquilo que esperamos, que as rosas não chegaram, que os sinos da felicidade não tocaram! E criamos uma puta ficção sobre o que queríamos ou sobre como queríamos que fosse a nossa vida, tudo, é claro, sem em nem um momento pararmos para pensar que o outro é o outro e não é necessariamente aquilo que queríamos que ele fosse. E assim vivemos o imenso abismo entre a realidade e o imaginário, numa completa ironia de nós mesmos.

- III -

Sim, Platão estava certo: não amamos ninguém, mas a fantasia do amor que vemos no outro. Ou amamos só o amor. E mais nada! Ironia de nós mesmos, visto que, na neurose, como diz agora meu vizinho Freud, de transformar o outro no objeto amoroso perfeito, acabamos como Cher (a cantora de cabaré, das novas terras de América, cuja carreira já foi encerrada 30 vezes): "We all sleep alone". E dormimos sozinhos não pq não encontramos o galã do seu folhetim, mas pq mesmo quando estamos com alguém do nosso lado, vivendo a ilusão da felicidade absoluta, estamos sozinhos a imaginar que tudo poderia ser um pouco diferente, mais ao nosso jeito, imaginando uma forma de tornar o outro exatamente aquilo que queríamos que ele fosse. Pior: fazendo planos de ser 2 sem perceber que a única forma lógica é compor 1 + 1. E não vai ser 2 nunca, pq o outro, da forma como costumamos ver, é apenas algo a serviço da nossa ilusão, a serviço do amor que esperamos e não do amor que construímos. E continuamos vivendo a ironia, a tragédia, a falta, a cupidez! E não penses que seus amantes estarão felizes em dividí-la ou quererão somar e serem 3! Não sejas boba! No fundo de seu ser, queres ser mulher de um homem só viver a vida romântica que tanto negas e rejeitas!

- IV -

Continuamos, Ema Bovary! E agora pq estamos sempre acreditando que somos muito melhores do que realmente somos, vivendo a plena certeza de uma realidade ilusória que criamos a nosso respeito, sobretudo no campo sentimental; e nos pegamos com frases do tipo: "Foi ele quem perdeu ao me deixar!" Ou "Não ligo se ele olha pra todo mundo, pq eu sou muito melhor!" Ou "Já te dei tudo de melhor que havia, mas se tu queres desse jeito, que seja!" E viva o tanto faz eterno! Nos pergunto: quem sofre, minha irmã, e tenta se convencer de que tudo não passa de um enorme equívoco? Quem é que sente que talvez não tenha o que o outro quer? Quem é que perde, no final?
Resposta: todos! Todos sofremos, somos menos que imaginamos, perdemos tudo, quase! Perdi Gretchen, ganhei a tecnologia, fragmentei-me e me dispersei em ondas hertzianas, minha irmã de dor!

- V -

E pioramos nosso Complexo de Ema (ou seria de ema? Somos todos aninais, em algum grau!) quando idealizamos uma personalidade para caber dentro de um relacionamento: não vou mais ao cabaré, não falarei para ele das minhas taras íntimas, não citarei minha educação com Mme. de Marteille ou com o malfadado Sade, não contarei pra ele a história mais adequada sobre mim mesmo ainda que nem mesmo ela me convença; serei um outro ou uma uma outra de mim mesmo, uma xilogravura mal acabada do que realmente sou pq para estar "casado", para ter o "amante" é preciso que as coisas sejam assim. E é claro: tudo nesse eu lírico é melhor do que somos! Somos a ficção de nós mesmos, Ema. Nada além disso: ficção e neurose! Talvez queira a imagem da Dorian, querida amiga: veja como ficou o retrato no final!

- VI -

A sua vida, da ema, digo, de Ema não melhora, minha irmã! E não melhora pq ela vive lá na puta que a pariu (perdoe-me este calão e os demais), aí Rouen, no subúrbio, nos arrondisement, no interior, na zona norte, na Suécia, na zona leste, na zona da leopoldina, na zona sul, em São Gonçalo, no Sapê. Só que, Ema, sonhas com o centro, com os Jardins, com Vienas, Paris, Morumbis, Leblons e Florenças da vida. Idealiza-se e idealiza a vida futura, achando que "tudo será melhor quando eu estiver lá!". Lá, aonde, luxuriosa e ninfômana amiga? E não vai chegar a lugar algum e se chegar, vai sempre olhar o centro pela margem, o luxo pelo lixo, o glamour pela periferia. E não vai perder o ranço pq acha que Rouen precisa ser esquecida. Mas só se esquece que o que se sublima, o que se oblitera talvez, se tornarmos isso parte de nós. Não maldiga Rouen, amiga! Torne esse teu espaço parte de ti. És em Rouen. Ou senão, será Emma em Paris mais uma dentre tantas românticas, mas com Rouen exalando pelos seus poros cobertos por imitações dos grandes perfumistas da rua do boticário. Além disso, seu cabelo armado, sua excessiva afetação, seus pós e cremes a denunciam, amiga! Emah, querida: é fácil tirar uma mulher de Rouen. O difícil, é tirar Rouen de uma mulher!

- VII -

Reclamas de seu casamento com Charles, avezinha! Mas no que é que vc gostaria que essa boda acabasse? Ele saiu das garras da mãe autoritária para as mãos daquela viúva estranha. O que sentes agora, já se anunciara naquele encontro entre vós, ao lado do leito de morte de teu pai: adultério! Ali não se consumou, mas o vento africano já mostrava suas ondas de calor, amiga. És adultera, provocaste o teu adultério e o adultério de outros e ainda se quer limpa diante disso? Ó, pobre mulher, que pena me dás, às vezes! És suja tanto quanto o retrato do Mr. Gray. Não se pretenda isenta de todas as culpas como achas ser.

- VIII -

Tu te casaste com teu pai, ó rapariga! E o fizeste consciente de tua própria carência e pequenez. E procuras ainda o teu pai falecido e morto, em Leon, em Randolphe, em Charles. Não o acharás, amiga! Além de iludida, és incestuosa? Pior: vês Charles como se teu pai fosse. Buscas nele proteção, apoio, força... Mas não encontras a paixão que tanto quer! Nunca encontrarás, lasciva! Nem nele e nem em nenhum outro. Queres resolver sua angústia infantil, seu desejo febril por atenção e carinho da pior maneira, amiga! Outro que seja seu pai acabará por corrompê-la e angustiá-la ainda mais, Ema! Nesse ponto, concordo com o amigo Sade: encontre um homem que a foda como homem e não como pai! Ou assuma definitivamente que queres foder com teu pai. E fiques contente somente com isso. E guardes o quente sêmen dele entre tuas pernas, como troféu de sua conquista, para depois sobre si mesmo semear o próprio engano e ver nascer da espuma o suposto amor!

- IX -

Não exija de Xarles mais que ele pode dar: ele não te dará o calor da paixão! É um simplório do subúrbio, amiga! Ainda vive sob os ímpetos da mãe louca. Ele é, como diz o distante Pessoa, passivo a todas as mulheres, como todas as mulheres. Nunca terá a firmeza de Ivanhoe, tenha certeza. Logo, contente-se com um homem, que como tu, quer ser submetido, dominado, sodomizado! Que exala esse ar feminil, que pretende ser arrebatado como tu o queres ser! Xarles não tem a força dos guerreiros e nem fará por ti o décimo terceiro trabalho! Creia nisso e sofrerás menos! Ou carregará Charles a Atlas e tudo o mais que com ele venha, por teu amor, para poder ser um dia o objeto que tu nunca conseguirás alcançar, posto que não existe! São só mais sombras da tua existência sórdida e medíocre, amada! Terminarás como a princesa, envolta nos ferros retorcidos da companhia mauritana se continuares a ver problemas onde não há. Contenta-te com viver o agora de tua existência, visto que ela se esvai e encurta a cada segundo. Não, Sharles não te possuirá ferozmente, nem atenderá aos teus pedidos por luxúria exaustiva. Charles está a se refazer da própria autofagia canibal. Não poderá, assim, canibalizá-la, minha criança.


- X -

Charles é mais velho que tu, minha perdiz, mas tu sabias disso quando o conhecestes. Ou será mais novo, inexperiente e afoito, a aprender consigo a dor do mundo? Sabias que não ele não tinha mais o vigor da juventude ou a certeza da velhice e que vinha marcado pelo amor malfadado do pretérito. Sabia nele as marcas do amor falido, do casamento arranjado, da fúria da viúva rica e mais velha. Agora cobras paixão? Ele só sabe te amar do jeito dele. É o marido, tu sabes! Tu mesmo juraste fidelidade, respeito e obediência aquele dia, na Catedral de Rouen. Agora queres o que? Ser na condição de esposa puta de todos os meretrícios. Tens de te convencer de que Charles possa ser isso só talvez: um calmo e morno marido, que lhe oferece não tudo o que tem, mas o que pode e o que não pode. Charles já tem a casmurrice de um senhor e tu, vives o frescor descendente das balzaquianas. Seus negligés, cintas e corpetes não o excitam, amiga! Mais vale para ele os lençóis de linho de Dona Maria I e D. João em Mafra: orifícios bordados por onde não passa o desejo, mas a necessidade, a consumação do casamento, o cumprimento dos acordos de Alvor e Maastrich.
Já tentaste sodomizá-lo? Investir os teus pianos ágeis em seu rabo de poucos pêlos e algumas hemorróidas? Creia, amiga! Charles já passou por muitas, boas e não tão boas, nas mãos das meretrizes de Lion e nos banhos de Estambul, quando fora conhecer os Cedros do Líbano e provar das relíquias de São Pelágio. Não há nada que não conheça ou que não tenha experimentado! Tu és a mulher com quem ele se casou e a ti cabe o comportamento adequado à dama que pretendias ser. Resigne-se: teus brinquedos e divertimentos, guardados na caixa de chapéus são só teus mesmo e servem de riso às criadas que se deitam com o cavalariço e que se perguntam como pode uma dama distinta ter falos de madeira, quando têm um marido. Elas se vão sem culpa na ponta dos machos, assim como o cavalariço que te bolina com os olhos do desejo, mas que não te traz dos perfumados dandis a elegância.
Mefisto me fez conhecer os prazeres sem fim, do conhecimento, da alma e do corpo! Faça o mesmo, emputessa-te! Ou seja a dama impoluta e calma que deves ser, casamentando a conjugal vida medíocre e normalizada. Já viste que como tua amiga Lúcia terás de escolher entre ser santa e casta ou ser puta e corrompida. Não poderás tu ser as duas coisas sem prejuízo para ambas.

- XI -

Quanto a estar sendo egoísta no teu caso anterior, te confesso: Sir Alfred Douglas não a quer, amiga! Não percebeste que és tão voluntariosa quanto ele? Que és mandona, mal-educada, irracional, irada, dura com quem a quer, como ele o fora com o Sr. Wilde? Não vês que clamas por carinho e só carinho é o que queres e que não ofereces nada em troca? Não consigo entender como foste te interessar por tão estranha figura. Sempre achei que gostavas dos fortes e taludos, que te protegessem e preenchessem tuas entranhas sequiosas. Mas ele, mais a um leprechaum que e a um gigante, com certeza não habita as histórias burlescas em que anões picantes doam alegria a senhoras gordas!
Todos tem de te amar, Ema, e este é teu problema! E tu só vês o seu egoísmo pela frente! E penso que talvez tu não amas ninguém. E que viva só o eterno exaspero da paixão que nunca chega. Penso nisso toda vez que lembro das suas gargalhadas e do jeito triunfante como te portavas quando te vi pela primeira vez. A quem querias convencer, querida suburbana? Querias mesmo era chamar a atenção do pintor que reproduzia a praça cheia, o burburinho do fim da tarde de domingo. Querias estar no centro do quadro pintado, achando que com sua afetação, com o excesso de sua personalidade, fosses estar no primeiro plano. Viste o quadro acabado? Não passas de um borrão de tinta, dentro daquele casaco vermelho, imitado das grandes modistas de Milão, no canto inferior direito do quadro, longe do primeiro lance de vista! Tu te tornaste um ponto de fuga de si mesma, ali. E depois voltaste para os confins de teu próprio sonho, naquele carro de aluguer, barato, em que entraras para ir até seu castelo-dacha.
Querias apenas mostrar-te mais que és, querida! Chamar a atenção para tua futilidade. Ser amada no final! Veja como tudo termina, então! Olhai novamente o quadro de Dorian e verás o escrutínio da tua loucura, verás o ponto em que chegas a suprema isenção de si mesmo!
Tu te tornas-te comum, como tantas outras, Luísas, Lúcias, Iracemas, Marguerites, Marias Eduardas, Capitus, Aurélias, Cecys... Quisestes ser Inês, Citeréia, mas não foste mais que Diana Caçadora. E Eco com Narciso, a se repetir sobre si mesma! Tu te acostumaste ao comum, ao corriqueiro, te tornaste móveis e utensílios dos cafés de baixo preço, a espera da ração semanal de caridade alheia, que lhe garantia o café amargo, algum creme que o cobrisse e parcas horas de satisfação. O que esperavas encontrar no canto da praça de Avignon, se não outras como tu, formatadas e comuns.
Não reclames mais, minha pequena. Pareço duro no dizer, mas sincero no sentir a tua dor ao pé de ti!

- XII -

Não entendo pq se escondeste de Randolphe naquela noite, no Cabaré! Sua presença emanava, querida Emma! Só se escondias pq como sempre, queres te sentir limpa! E achas que se escondendo ou escondendo o óbvio torna-te mais impoluta? Randolphe sabia que estavas ali, escondida! E que participara das bebedeiras. Será que não vês que ele divisava seu braço roliço e branco, alabastrina escultura, entre os véus do biombo? Ou que ele, estando no foyer, não ouvia seus gritos histéricos, a pedir para ser fodida de todas as maneiras e ainda assim fazendo-se pura e tendo a certeza de que a bebida seria a culpada pelo dia e pelos seus delírios? Não vias que naquela situação, vc, Fanny – bêbadas e excitadas - Bárbara, Mary, absinto e bebidas baratas, não poderias seu amado pensar outras coisa se não o óbvio? Quatro mulheres semi-nuas e bêbadas de sua própria vaidade podem mostrar o quê? Ou melhor, o que esconderão? Randolphe percebera minha excitação, que se marcava no meu peito transpirado e no vinco abaixo do meu púbis. Tiveste a chance de mostrar quem és! E preferiste mentir! E continuas a mentir-se, heterônima de uma outra qualquer!
Naquela noite foste iluminada pela luz de Isadora. Tudo era luz clara, claramente clara. Mas optaste pela penumbra. E aí ficaste: penumbrosa em Rouen!

- XIII -

Clamas por Roma, Amsterdão, Paris, o Mundo. Pela Germânia, pelos Impérios Prussianos? Quereis tu adentrar as terras de cá e amainar a rusga entre Germano e Franco, dois jovens nascidos a agosto, no calor do verão, com sua vintena de anos, cada um a um canto do Ródano!? Quereis ser Sissy ou Catarina ou Margot, rainhas de todas as eras? Não tentes, visto que não há lugar aqui para ti. E nem os filhos de Carlos Magno podem tomar do leite da mesma loba. Eles não se complementam, apenas que disputam a mesma teta! Não há lugar para os dois, irmã! Não lembras tu que Franco tentara sodomizar o próprio irmão, que se deixava penetrar como que para marcar seu domínio sobre a fraternal pica? E depois, rejeitara o cano do outro, posto que já o vencera no seu íntimo e tirava do outro o que reservara a sua fiel amante e levava do outro as terras longínquas que conquistara? E Germano, o que ama a Alemanha e que a faz nascer, pois, apenas joga com tudo e todos na sua suposta burrice?
Não venha para estas terras, Emma! Aqui, Bovary, as ruas não têm nome! Tem apenas, o gosto amargo da perdição da cidade, em que todos querendo ser diferentes são a mesma massa informe e ignota! Não subas ao teu alto promontório que não verás o mar e nem assistirão ao enterro de tua única quimera, a paixão!

- XIV -

Negaste o amor de Armand ou erro de amiga? Continuaste com o casaco barato que indica seu estado sanguíneo ou o guardaste em algum armário de tuas lembranças? Lembras que ele está rasgado, minha pomba branca! Torno a Armand: não viste sua insistência em tentar fazer-te entender o jeito como lhe amava? E tu, na sua frieza pueril, a vê-lo como amigo. Não viste no amador a coisa amada? Não te transformaste em razão do amor do outro por quê? És apenas agora vítima do seu escarro escarlate sobre a mão que te estendiam e do afastar a boca que te queria beijar. És a negação do amor que amas, perdiz! Tu, só tu no impuro amor, que o seu coração agora inumano a nada obriga, não conseguirás nunca explicar às ervinhas o nome que não trazes inscrito em teu peito. Ò vã cobiça, irmã! Negaste a Armand o direito inconteste de dar a provar do seu amor! Agora negaste a admitir que erraste. Mas não há mais tempo, amiga, tudo se dissipa na névoa fina do tempo e culmina na escuridão da mágoa. Teu tempo é o fim. Teu errar sublimará a toda a teleologia, a própria teologia e te provará a existência de um Deus que não virá em teu socorro. Deste causa a tua moléstia e só a morte virá em teu socorro.
Mefisto mo disseste, amiga! Não fujas do destino que escolheste!
Felicidade? Terás felicidade ao lado de outro? Ou continuarás a procurar o que nunca acharás posto que tão perto de vc que não vês? Ficarás eternamente presa a Rouen, no afã de ver o para além, sem conseguir ver o que vai por detrás da urze. Não há mar, Inês, não amar, Emma!

Mistérios Gozosos

Agora te anuncio, Emma, não mais pelos seus diversos nomes, mas pelo único por que atendes: Emma! E em não podendo te visitar, faço dessa carta o nascimento da sua alma enquanto estilo, modo de ser, de olhar a vida, viver. Existência que se sublima, sublime alcança o éter, se verte em vida!
Passaste parte da sua vida ao lado de teu Charles e dele de alguma forma tivestes o melhor que ele poderia ter te dado. Foste levada ao mundo, à dor, à angustia, à frieza e à distância. Mas também foste apresentada ao melhor que a vida tinha, foste amada, foste querida, desejada e cortejada com os respeitos de um homem casado. Foste tratada como dama, antes de sê-lo como mulher! Provaste da taça da alegria e da felicidade. Por que não te contentavas com apenas aquilo que dele vinha de maneira mais firme e sincera? Por que quiseste a luxúria, a aventura, os romances cor de rosa? Por que não quiseste em teus seios apenas a boca que demora para vir mas que ali se demorava, mesmo que protocolarmente?
Por que, Emma-cada-um-de-nos-ansioso, por quê?
Queres tu um homem ou um sonho? Queres tu a verdade sobre ti mesma ou farás como eu e tomará teu filtro, teu ópio, teu haxixe e se perderá nas índias por achar? Tu te perdeste de ti mesma e foste encontrada dialogando no templo de tua própria perdição! Quantas armadilhas tu não te impuseste, amiga? Agora, entre Leon e Randolphe, Armand e Charles, a quem escolhes? Não poderás ter todos e eles querem só uma.
Clamai, Emma, clamai pelos entes imaginários que tornaram teus olhos em nobilíssima visão. Tens coração ainda capaz de render-se a sedução de si mesma e assim se encontrar. Ouvi este teu amigo, Fausto, que ambiciono do céu as estrelas mais formosas e da terra os gozos máximos!

Mistérios Dolorosos

Vão agora, Emma, as insígnias da tua dor, salpicadas pela astrologia, pelas ciências ocultas que me arvoram, pela magia das terras pagãs, na descrição dos homens que amastes:

Leon, o leão, de leão, o teu Leão. Pouco pêlo. O flâneur. O primeiro a querer ter teu coração. Da terra. Razão da tua agonia. Teu jardim. Das Oliveiras. Quer se o único. O que não divide. Quem não te divide. A preguiça. A languidez. A fuga. Falsa alegria. Transfiguração. A Rosa. Alma híbrida. Desejo de mulher. Pulsão de homem. Princípio da tua vida de devassidão e enclausuramento. A dor e a doença. Não lhe peça saúde, mas a não-moléstia. Corpo marcado pelas marcas da sífilis, pelos amores antigos. Alma crua, discípulo que espera ensino da tua mão, doutrina da tua vagina, encanto da tua voz. Combate! Os filtros. As drogas. Resistência! Ferida mal curada! Ciúme, tragédia, morte e suicídio! É cobra-leão, infinito do próprio rabo, balanço da própria juba, domínio da calda das estrelas. A peste. A náusea. Teu primeiro fim. A lua. Branco. O feno. O encoberto.

Randolphe, o lobo, o lobo amarelo. Amarelo. Leão em pele de lobo. Pele e pêlos confusos. Espelho dourado, numa mão. Espada na outra. Miragem de si. Revelação. Das águas doces. Da queda. Das quedas d’água. Da tua queda. Teu passeio. Quer a mãe. É mãe. Razão da sua loucura, caminho da sua perdição. O que sabe. O que te sabe. O que nunca decide. O que a quer só pra si. Não lhe diga miséria. O luxo. A riqueza. O esnobismo. Quer ser o único. Confuso. O não querer. O ansioso. A sua ansiedade. Face marcada pela chaga. A guerra. A ruptura. tensão. A bebida doce. Alma feminina, passiva. O narciso. Aquele que quer ser seu filho. Que quer saber o cheiro da sua buça. O que brinca e depois joga fora. Quem não sabe o que fazer com vc, brinquedo. Meio do caminho da sua existência febril. O que não corresponde. A falsa saúde. Braço forte, peito fechado. Feridas abertas do sentimento negado. O que espreita à noite escura. Uivo. Rapina. Roubo. Invasão. A preguiça. Gracioso. Elegante. O sol. Girassol.

Charles, o touro, de touro, o fazendeiro, o dono. Touro. O Touro Branco. Cajado das próprias forças. Velho. O desejado. O amável. Êxtase. O pretensamente amável. Curioso do seu corpo. Que já te descobriu por dentro. Que já desvelou as dobras da tua vagina. O que conquista. O expansivo. O velho. O taciturno. O manipulador. Alma masculina. Lírio branco. O líder. Líder da sua desgraça. Inquieto. Ilusão. O de vida longa. Da sua vida longa. O centro. Quer ser único. O que mama dos teus seios. Bebe da água da tua xota. Te domina. A mesmidade. A robustez. Que esconde as próprias feridas.O bem vestido. A gordura. Engordurado. A fome. A falta que faz e que deixa. A ausência. Princípio da sua vida de dama. O sem pêlo. O desbravador. O que rompeu o hímem da tua existência sórdida. Quem te deu o fruto proibido e te expulsou do Paraíso. A fome. A melancolia. A sisudez. Todo o firmamento. Balança.

Douglas, o escorpião, de escorpião. Prazeres ilícitos. O sodomita. Que te sodomiza. Te avizinha. Se avizinha. A Morte. A tua morte. O dandi. O fresco. Que traz o chicote. Que morde pelo rabo. Não quer ser único. Não quer ser nada. O nada. Robusto. De poucos pêlos. Que mama teus peitos. Que tem grandes peitos. A insanidade. Que te mete por todos os buracos. Teu buraco. Aquele que te empurra pro fim. Abismo. Da água escura. Ocupado. Dependente. Infantil. Que te manda suja de seu leite pra casa. Do mar. Escamoso. Escorregadio. Mandão. Autoritário. Escapista. A água. Voluntarioso. Altivo. O de azul. O manipulador. Ciúme. A tua desgraça. A vaidade. A ira. Que navega sobre os astros. A insatisfação. Ativo-passivo. Tudo. Nada. Cheiroso. Feridas cobertas, falseadas. O que te deu a ilusão do mundo. De que o mundo era seu. A ilusão. Peixe. A Violeta.

Armand, o homem das armas, da guerra, da morte, da peste, da fome. Sagitário, expansão. O que te quis e foi rejeitado. O amargurado. O melancólico. O que acende o teu estopim. Do ferro. Ativo. Decidido. Enérgico. Aventureiro. Líder da sua desgraça infinita. Cabeça dura. Do fogo. O viajante. O dono das estradas. O que te imobiliza. Que toca teu corpo e te deixa com vontade. Aquele que não conheceu sua vagina. Aquele que te banhou. Que te possui. Aquele que quis ser seu dono. Que quer ser teu pai. A terra. Que tem o grande falo. Que transpira. Sexo. A placidez. Feridas vencidas, mas não curadas. O meio. O fim. Princípio? O do prazer solitário. Aquele que pisa na tua terra e domina os teus caminhos. A pedra. O solo. A mão. O instrumento. O instrumento que tu não irás conhecer. O jamais. O que te receberá na tua viagem infinita. Pantera. Vaidoso. Cheiroso. Ardiloso.
Emma, a que tudo abraça, a sem foco. Sem concentração. Gêmeos. Dividida, insafisfeita. Incompleta. A que veio da terra. A que ao pó voltará. Água e pó. Lama. Cabeça da serpente. A que vem do subúrbio. A dos grandes seios. De coração aflito. A que mendiga o pão. Sede de falo. Fala muita. Sede de paixão. Sede da paixão. Cipreste. A da vagina sempre aberta. Receptiva. Contraceptiva. Produtiva. Agricultura. Meio, principio e fim da própria perdição. Agravo. Agrado. Desgraça. Doença. Inferno. Perdição.

Mistérios Gloriosos

Deixo-te falar, Emma-Margarida, cuja voz dispersa só escuta a minha nesta carta. Recende ao encanto de todos os irrealizáveis afetos, de todos os amores mal ditos e malditos. A todas as esperas inúteis pelo que nunca virá. E pela minha boca, dirás: quem me dera ter vencido essa vida, sem a mãe que do auto sentada não me vê, não me olha e não me atende. Perdida na angústia da paixão, sôfrega no delírio dos meus descabelos cabelos verdes. Tranças da minha existência, sombra da minha penumbra eterna, homens da minha vida: valei-me nesta hora. Doença, dor, sono, fusão... Deito-me para não mais acordar. Meu quebranto, meu delírio, fim de minha liberdade. Armand, Douglas, Charles, Randolphe, Leon, Homens de Minha Vida, amores de minha alma. Meu meio molha ao som do coro de suas vozes, mela meu vestido, seca as minhas entranhas. Gozos da minha juventude, desvãos da minha pureza, resvalos da minha dignidade: tudo é fim, tudo é fuga, desconcerto, desassossego, desatino. Por que o não da paixão, por que a infelicidade, por que a incompletude. Sigo e só sigo porque não consigo mais, sem mais ninguém, nem eu nem vocês, abraçar o mundo.
Deus-que-não-há: Ouvi minha oração!
Santo, santo, santo! Santo senhor dos fálicos falos, santo senhor das paixões desmedidas, do amor que nunca chega, olhai por mim nessa hora de morte. Socorrei-me nessa hora de findo desejo, senhor! Socorrei-me do meu bovarismo, salvai-me de mim mesma, da minha falta, do que não me completa em mim. Salvai-me do amor que não chega, que não basta, que me arrasta. Piedade, piedade, piedade! Que eu seja puta, que não seja santa, que eu não seja nada! Nem Marguerite, nem Lucíola, nem Desdêmona. Nada, só desejo e incompletude. Cupidez e delírios. Eternamente, Amén!

E me arrebato, contigo, Emma, pelos caminhos de Mefisto! Serás tudo, serás todos, serás toda: Ema, ema, Hemma, Ehma, Emmah, Emah. Todos que da tua cupidez, que do seu desejo partilham e acham que vivem. Todos e muitas, desejo incompleto, vida que se arrasta.

É a hora!

Do consumido Fausto, que nunca foi teu.

Carta de Emma a Mefisto


Estava tu, Satanás, sentado à margem do Rio Jordão e não me vias! Sabes tu que sou mulher, que também choro, que não quero conhecimento, que não preciso dele, mas quero as profundezas do corpo e tu não me dás! Tu, minha última recorrência, meu fim e condenação e eu lá, na tua frente! Tu, como todos os outros homens – quiça tu ser sem sexo ou gênero, pior das espécies e entes – Tb tu, ser dos sete chifres pontudos, me ignoraste e me usaste.

O APANHADOR NO CAMPO DE CENTEIO


QUEM DISSE QUE OS PERDEDORES NÃO TÊM O QUE DIZER?